
2 PROFESSOR COMO PESSOA
A educação, embora aconteça em diferentes cenários, tem um lugar concreto para ganhar vida: a escola. É na escola que se desenrola toda trama da vida escolar dos seres humanos. Ela (a escola) é o espaço dinâmico e vivencial onde os protagonistas se encontram e se relacionam em prol do grande objetivo comum que é o ato de ensinar-aprender. Há um grande movimento entre esses dois verbos, onde um complementa o outro, seja no caso do aluno, como no caso do professor, isso porque ambos têm o que ensinar e o que aprender, mesmo que em dimensões completamente diferentes.
No entanto, percebe-se que neste ambiente propício à aquisição de conhecimentos existem várias problemáticas a serem trabalhadas. E, embora se saliente as dificuldades em torno do conhecimento em específico, há outros desafios a serem contemplados.
Hoje sabemos que não é possível reduzir a vida escolar às dimensões racionais, nomeadamente porque uma grande parte dos atores educativos encara a convivialidade como um valor essencial e rejeita uma centração exclusiva nas aprendizagens acadêmicas (NÓVOA, 2000, p.14).
A fala de Nóvoa nos remete a um novo olhar sobre a educação buscando visualizá-la a partir de novas perspectivas e não somente a partir dos dramas de aprendizagem.
Nóvoa introduz um tema importante a ser refletido a partir da grande trama educacional: a convivialidade como aspecto importante e de valor essencial. Esse pensamento reflete a valorização da dimensão subjetiva no encontro entre os protagonistas da educação: professor e aluno. É o balancear os aspectos racionais existentes no dia-a-dia da sala de aula, como o conteúdo a ser ensinado em específico, com os aspectos subjetivos que também tem seu lugar na sala de aula, como, por exemplo, as inúmeras interações que acontecem a cada instante e são recebidas de formas diferentes, já que dependem de fatores característicos de cada pessoa.
Ainda a partir das contribuições de Nóvoa pode-se perceber a evolução da reflexão sobre a educação quanto ao objeto de estudo centrado no professor, quando ele traz presente os estudos de Ball e Goodson (1989) e Woods (1991) salientando o processo vivido. Ambos os estudos referem-se:
Aos anos 60 como um período onde os professores foram “ignorados”, parecendo não terem existência própria enquanto fator determinante da dinâmica educativa; aos anos 70 como uma fase em que os professores foram “esmagados” sob o peso da acusação de contribuírem para a reprodução das desigualdades sociais; aos anos 80 como uma década na qual se multiplicaram as instâncias de controle dos professores, em paralelo com o desenvolvimento de práticas institucionais de avaliação.
É, pois, na década de 80 que os professores começam a ser objeto de reflexão e não meros atores responsáveis por executarem a difícil tarefa de ensinar. Com o livro “O professor é uma pessoa”, de Ada Abraham, publicado em 1984, os professores são “recolocados no centro dos debates educativos e das problemáticas da investigação, como bem salienta Nóvoa (2000, p.15).
Ao olhar o professor sob a ótica de seu ser como pessoa, evoca-se a necessidade de se levar em consideração que também o professor é fruto do meio em que vive e se desenvolve. Ou seja, o professor é um ser construído a partir de suas interações com a realidade e sua identidade, aquilo que o identifica como ser único, é reflexo de seu passado e do presente contexto onde se encontra.
A identidade não é um dado adquirido, não é uma propriedade, não é um produto. A identidade é um lugar de lutas e de conflitos, é um espaço de construção de maneiras de ser e de estar na profissão. Por isso, é mais adequado falar em processo identificatório, realçando a mescla dinâmica que caracteriza a maneira como cada um se sente e se diz professor (NÓVOA, 2000, p.16).
Não existe o professor dissociado do que a pessoa é fora do cenário escolar. Pessoa e professor são duas faces do mesmo ser que se fundem e dão vida às pessoas concretas que se dedicam à fantástica missão de educar. Isso significa que o ser professor é fruto da dinâmica construção do próprio ser que, ao se construir como pessoa, se constrói também como professor.
Assim sendo, surge uma grande interrogação: quem é o respectivo professor que se encontra frente a uma sala de aula? Um professor polivalente ou especialista em alguma área. É o Joaquim ou a Maria ou ainda a Isabel.
Pode-se dizer sua qualificação profissional, seu nome e até características peculiares a eles. Contudo, o professor é muito mais do que é visível e conhecido. O professor é resultante de um emaranhado ao qual se dá o nome de história pessoal.
História pessoal é algo dinâmico e se relaciona a algo concreto, a uma pessoa concreta, com passado, presente e aberto a um futuro. E essa pessoa se coloca no seu dia-a-dia com tudo o que é e o que tem, isto é, no hoje de sua existência ela se apresenta com tudo o que construiu ao longo dos anos e, principalmente, em sua inteireza - corpo, emoção, pensamentos e comportamentos.
Em Pimentel (1993, p.23) pode-se compreender um pouco sobre esse ser inteiro:
É na concretude real, no cotidiano de muitas facetas que o homem encarnado, não o abstrato homem da especulação, está inteiro - emoção, afeto, pensamento, comportamento... Ali, na realidade pré-reflexiva da cotidianidade, está seu passado, seu presente, articulados na sua pessoa. Mais do que isso, o cotidiano é o lócus da intersecção dos processos sociais e da subjetividade individual. Portanto, ali, nas “banalidades” do dia-a-dia, nos atos “à toa”, está presente a biografia social do homem, da cultura, das ideologias e dos fenômenos sociais em geral.
Assim sendo, pode-se concluir que as ações do professor estão entrelaçadas em suas experiências passadas, juntamente as suas atitudes do momento presente, já que o desenvolvimento humano não é algo estagnado, mas um processo dinâmico, contínuo e gradual. Cória-Sabini (2003, p.09) diz que “neste processo, cada pessoa, à sua maneira e no seu tempo, dá sentido à sua vida”. Ou seja, o professor, como ser humano que é também está em pleno desenvolvimento e sua relação com o mundo que o cerca é consequência desse processo.
Baseando-se em reflexões de autores como Nóvoa (2000) e Bueno (2003) se pode pensar num trabalho com professores a partir da escrita de suas autobiografias como meio para refazer o caminho percorrido até então encontrando nele objetos para se auto compreender e, ao mesmo tempo, se avaliar quanto ao trabalho desenvolvido em sua prática docente.
“É fundamental voltar-se para o passado e buscar estudá-lo em sua perspectiva histórica e social, de modo a melhor compreender como as histórias individuais e coletivas se entrelaçam e se produzem” (BUENO, 2006). Ora, é fato que a história pessoal de cada um influencia no seu presente; e é fato também que, quanto mais se conhece, mais o indivíduo tem possibilidade de se auto avaliar, construindo ou mesmo reconstruindo sua própria prática de modo que esta seja trabalhada de forma a melhor auxiliá-lo no desenvolvimento de seu trabalho.
Levando em consideração que o ser humano passa grande parte de sua vida no ambiente escolar é mais que evidente que, ao fazer memória de seu passado, os professores irão se recordar das lembranças da vida escolar. Tais lembranças muito contribuem para a reflexão sobre a prática docente, já que grande parte dos professores assim se tornaram por conta de momentos vivenciados na escola que fizeram com que despertassem neles o desejo de ser professor. Pode-se encontrar essa afirmação a partir da autobiografia de alguns professores presentes no livro “A vida e o ofício dos professores (BUENO et al. 2003):
[...] Os nossos uniformes, o meu e o do meu irmão Ananias, eram o mais lindo possível, pois minha mãe clareava e engomava as nossas blusas para que estivéssemos sempre limpos e alinhados. Era incrível! Se algum aluno não acompanhasse o padrão era criticado e discriminado. Acredito que a origem do meu senso crítico esteja exatamente nesse período de escola pública [...]. Aprender para mim era como alimento, e cada professor deixou marcas em minha vida. Uns carinhosos, outros agressivos, mas na maioria deles eu pude perceber uma dedicação e uma responsabilidade em ensinar, que ainda hoje eu me espelho nestes mestres: Maria Amália, Maria Lúcia, Gilda, Eliete e Tuiutila (FELICIANO, 2003, p.161-162).
A escola sempre foi vista por mim como um lugar de aprender, onde deveria ouvir os professores, prestar atenção no que diziam, estudar, e estudar muito para tirar notas boas. Essa visão foi sendo construída ao longo do tempo, não apenas através do contato, da vivência na escola, como também por meio de meu ambiente familiar, onde a educação sempre foi muito valorizada [...]. Mais tarde, já em outros tempos, quando a escola e os professores haviam perdido um pouco do fascínio e encantamento de outrora, eu me tornei professora. E essa visão de escola, formada na infância, passou a ter uma participação importante na construção de minha identidade profissional (LAPO, 2003, p.120).
Sempre tive medo de enfrentar situações novas e durante uma parte de minha vida me vi como que agarrada a uma pedra, com medo que a correnteza me levasse a lugares desconhecidos [...]. O meu “eu pessoal” e o meu “eu profissional” durante muito tempo trabalharam assim com medo. Fico imaginando que mensagem eu passei durante todos esses anos para os meus alunos! Acredito, hoje, que não adianta querermos participar da construção do outro, se também nós não nos permitirmos construir a nós mesmos enquanto pessoas e profissionais que somos (AMARAL, 2003, p.151).
Desses relatos podemos perceber o quanto a vivência escolar teve influência na vida profissional dessas professoras. São experiências vividas que, a partir da memória, são resgatadas e trazidas para o presente, contribuindo para a compreensão de si próprio e de sua forma de conceber a educação.
Este trabalho de autobiografia é difícil, pois requer um empenho pessoal de volta ao passado, o qual muitas vezes deseja-se ser ignorado. No entanto, ele é de essencial importância como meio para o processo de conhecimento pessoal, de retomada de si e de readaptação da prática docente (se esse for o caso), pois, como salienta Catani “pensa-se que as próprias práticas profissionais dos indivíduos enquanto docentes devem muito aos processos formadores que eles próprios experimentaram ao longo de seu desenvolvimento (2003, p.29).
Conclui-se que, quanto mais o professor se tem nas mãos, se conhece e se admite como um ser em processo contínuo, mais se auto compreenderá e será passível de compreender seu aluno, podendo contribuir efetivamente em sua construção pessoal.
O slogam: “só se pode dar o que se tem” aplica-se nesse contexto a partir da compreensão de que a educação não é apenas uma transmissão de conteúdos construídos, mas sim, um meio propício para o desenvolvimento do aluno em sua integralidade. Assim sendo, o professor quando tem a vida em suas mãos, poderá colaborar para que seu aluno também tenha a possibilidade de se conhecer e construir seu próprio mundo.